AEROFOBIA
Passados alguns meses sem ter que viajar de avião, no final do ano passado resolvi fazer uma viagem. Da minha decisão em diante não tive mais um minuto de sossego, se é que já experimentei isso alguma vez na vida. Todos os pensamentos, como em qualquer boa psicose, me levavam irremediavelmente para o fatídico dia do vôo, provavelmente último da minha vida. Cada gesto diferente dos amigos, nuvem no céu, página de livro folheada, música... explicitas mensagens para não embarcar.
No entanto, estava decidida.... e o famigerado dia chegou. Sai de casa cedo, ainda era madrugada, para chegar ao aeroporto. No caminho, a renitente pergunta: como alguém pode, tendo a certeza do pior, se conduzir até o seu algoz... alado?. Sofria, tenaz e calada, o meu infortúnio. Ao ligar o rádio, porém, mais uma confirmação me chegava, vinda das esferas decisórias e sádicas, ao tocar: "... além do horizonte deve ter, algum lugar bonito pra viver em paz"...
Como obediente oficial dos desígnios de mim mesma, prossegui. Já dentro do avião, talvez o pior dos avisos, me abateu o ânimo já cambaleante. Na ausência de um passageiro, a aeromoça pede a confirmação da presença chamando seu nome: Alfredo Boamorte! O homem que estava sentado ao lado da cadeira de Boamorte deu um pulo, e no susto soltou um "Deus me livre!"... Mas não adiantou, esbaforido adentrou o tal Alfredo, para tácito desespero geral.
Pensei em desistir, lembrei que uma amiga havia tentando entrar em contato comigo algumas vezes, e não conseguiu, provavelmente alguma coisa ligada ao inevitável que ora se configurava (e, creia, depois ela me disse que o sonho foi de um acidente fatal comigo). De novo, me obriguei a continuar, e levantamos vôo. Parecia tudo se encaminhar bem, se é que podemos dizer "bem" ao absurdo ato de querer voar como os pássaros, quando uma leve turbulência acontece, seguida de outra não tão leve, e de outras mais intensas...
Comecei a me despedir telepaticamente de todos. O mal estava irremediavelmente feito, fui avisada, mas quis aceitar o meu destino... Quando pouca ou nenhuma esperança me restava, o comandante anuncia o pouso na Cidade Maravilhosa, nunca tão maravilhosa como naquele momento. Ao desembarcar tive a nítida impressão de que João Paulo II, ao visitar um país, não beijava o seu solo primordialmente para saudá-lo, isso também, mas acho que ele devia ter medo de avião, pois esse era o meu mais visceral desejo.
Quanto aos desdobramentos de tudo isso, a viagem foi linda, conheci pessoas maravilhosas, aprendi muito, sobretudo tive a confirmação de que os medos precisam ser encarados, pois se alimentam e crescem com a nossa covardia. Se ainda tenho medo de avião? De avião, de escuro, de bichos peçonhentos, de fantasmas, de doenças, de rupturas... todos querendo impedir os vôos, que eu insisto em fazer.
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(Vale dizer: tudo aconteceu como relatado.).
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(Vale dizer: tudo aconteceu como relatado.).
5 comentários:
Parafraseando Sêneca: Só quem corre riscos pode voar.
E mais...
"Somos apenas (...) almas perdidas
Nadando num aquário
Ano após ano
Correndo sobre o mesmo velho chão
O que encontramos?
Os mesmos velhos medos"
(Pink Floyd)
Daiane, adorei....
O nome do passageiro "Boamorte", então.... imagino como se sentiu???
Pois é, medo: de que? tantos medos...tanta coragem!
De novo: adorei!!
Daiane,
Adorei! Você escreve muito bem. Texto delicioso!
Imagino o q sentiu com o passageiro "Boamorte"!
Tanto medo e tanta coragem!
bj
Tenho o medo como companheiro de viagem,
sempre ali ao lado,
alertando para os perigos
que em meu desleixo bobo de sonhador
me exponho!
E assim
de sonho em sonho,
de medo em medo
me arrisco a ser bobo
sendo feliz!
(Marcos Varjão)
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