"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música." Nietzsche

Formspring

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Guardadora de Utopias

DEIXE DE SIBITEZA (OU DEIXA A SIBITEZA)

Na última terça, a professora Lurdinha trouxe o tema da diversidade linguística, no Brasil, ao revelar que as pessoas estranharam quando ela falou a palavra “capote”, lá em São Paulo. O termo não é muito usado por aquelas bandas, a reação dos paulistas foi rir do fato, como se tivessem ouvido um absurdo. Apesar da atitude costumeiramente preconceituosa dos que se acham (n)o centro, a conversa prosseguiu, falei então da minha experiência linguística convivendo semanalmente em lugares bastante diferentes, o litoral e o Sertão.

Por exemplo, falar que foi um bolodório, com os meus alunos de Ribeira do Amparo, soa tão natural quanto falar que foi uma confusão, para os alunos de Salvador. Posso dizer, em Ribeira, que os russos enrabaram os nazistas, durante a II Guerra, mas seria um desacerto se o fizesse em Salvador. Na capital, me limito a dizer que os russos foram atrás dos nazistas, depois de impor a primeira derrota para a Alemanha de Hitler. 

Os exemplos não param por aí. Não vou obter tanto êxito se, em Ribeira, não exemplificar a queda dos preços, durante a Crise de 1929, falando de como o preço da carne cai, quando infusa na feira. Em Salvador, resolve dizer que a grande oferta de produtos fez cair os preços. Em se tratando dos costumes dos nobres, no Rio de Janeiro, depois da vinda da Família Real, impossível traduzir o cenário, aqui no nosso sertão, sem falar da sibiteza destas pessoas. 

Em suma, a língua emana do social que a cria, recria e utiliza, tendo com ela uma relação de sentido e afeto, elaborados ao longo de uma história. Não posso tocar o meu interlocutor, se parto do princípio de que a língua é um instrumento frio, técnico, quiçá acreditando existir um jeito mais certo ou mais errado de falar. As mesmas palavras podem dizer coisas bem diferentes, em diferentes lugares, podendo soar indiferentes ou mesmo incompreensíveis, sendo incapazes de cumprir com a sua função primordial, comunicar.

Com o meu avô, no limiar dos seus 90 anos, homem da lida com a roça, não alfabetizado, poupo “efes e erres”, para falar a sua linguagem, que também é minha. Quando me mudei de Ribeira para fazer faculdade, em Alagoinhas, emagreci, ao me ver vovô disse, “tá mais magra, Daianinha, mas é assim mesmo, gado emagrece quando muda de pasto, mesmo se o outro for melhor.” Não haveria colocação mais perfeita para se fazer entender, diante do seu conhecimento empírico, adquirido em décadas de observação da dinâmica da terra e dos animais.

Sendo assim, para que tanta sibiteza de querer fazer do seu modo de falar o único correto? A coexistência das diferenças é o problema ainda não resolvido dentro das sociedades humanas, poderíamos começar respeitando as peculiaridades, percebendo as belezas e sutilezas de cada vocabulário, língua, linguagem. Precisamos enxergar e reconhecer na diversidade linguística a essência da natureza humana, seres singulares do ponto de vista individual e coletivo. 

Do contrário, façamos como a professora Lurdinha, que complementou o seu relato revelando que ao se defrontar com a situação desrespeitosa para com o seu vocabulário, em São Paulo, preparou uma aula sobre o termo capote e levou para aplacar a ignorância dos colegas. Tudo isso sem sibiteza nenhuma.

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